Antes de tudo isso acabar, eu quero, só por sacanagem, contrariar todas as regras, tornar-me a maior de todas as execeções.
Vou, só por sacanagem, grafitar muros com minha tão previsíveis premonições. Jatos de tin ta preta darão formas às palavras: desigualdade social, fome, miséria, egoísmo, corrupção, descaso, acaso. Um apavorante tom de vermelho fará contraste com o preto, destacando palavras como: medo, silêncio, comodismo, sadismo social. E, apenas para deixar tudo mais trágico e realista, usarei o mais fraco tom de cinza para grafitar, digo, manchar, ao lado, em um canto visível, com um efeito trêmulo, as palavras: amor, esperança, afeto, justiça… Entre outras, muitas outras que serão, uma a uma, separadas por um sinal de ? tingido de vermelho sangue propositadamente, só de sacanagem.
Não satisfeito, declamarei minhas mais angustiantes poesias em praças públicas, falarei sobre tudo que já sabemos, mas ignoramos… Picaretagem, nepostismo, prepotência, descaso, mensalão, mínimo salário mínimo, “cuecas de ouro”, humilhação, miséria, confiança, desconfiança, esperança… Nada escapará. Farei um verdadeiro escarcéu com direito a megafone que elevará minha voz flamejante e sedenta de indignação, fazendo-a atingir afros e caucasianos, pardos e mulatos, amarelos e quaisquer que sejam os integrantes dessa miscigenção social/racial. Falarei sobre TUDO. Sobre a lavagem cerebral pela qual viemos passando durante todos esses anos de influência e de ataques psicológicos que sofremos vindos de diversas fontes, por detrás de diversas lentes televisivas, por trás de inúmeros poderes e através de inúmeras mentes, quase brilhantes, persuasivas. Discursarei sobre política, politicagem, malandragem. Sim, só por sacanagem!
Gastarei centavo por centavo para comprar uma passagem aérea, na classe A, com destino Lamasília Brasília. Deixarei minha roupa social em casa, engomada e dobrada e, só pra sacanear, farei camping em frente ao Congresso Nacional até poder ter a atenção de algum elegante senhor de terno giz, qualquer um deles. Neste momento sairei do anonimato vestindo o traje mais básico de que disponho, uma calça jeans desbotada e, só de sacanagem, rasgada, uma camiseta branca de mangas curtas e um chinelo de dedo. Serei educado, sereno, bem humorado… Atento!
Após a formalidade dos cumprimentos pedirei para fazer apenas um pergunta, sim, uma única pergunta. Talvez eu questione sobre o por quê da educação pública ser tão pobre ou o porquê do Sistema Único de Saúde ser tão precário. Uma única pergunta. Quero apenas uma resposta, uma mentira, uma falação e, depois, lançarei ao final de cada esfarrapada explicação uma simples indagação: “por quê?”. E lá virão mais explicações, mais mentiras, mais histórinhas da Carochinha e, no final, lá estarei com mais um “por quê?” engatilhado. Só pra sacanear farei isso pelo menos umas 30 vezes!
Após saciar minha fome por abobrinhas poderei regressar satisfeito. Há coisa melhor do que voltar para casa com a sensação de dever cumprido? Refiro-me à sensação que deve estar sentindo o ilustre senhor de terno giz que, com certeza, chegará à sua casa pensando que iludiu mais um e que este, possivelmente, irá contagiar mais dois que, por sua vez, atingirá mais três que criarão uma comunidade no Orkut que, então, darão vida a mais uma peça teatral. Advinha quem serão os fantoches? Dessa vez NÃO! Agora vou, só de sacanagem, quebrar a rotina dessa população que vive dopada, iludida e crente em palavras vazias sem nem ao menos questioná-las. Vou abrir o jogo, cavar o poço de sujeiras e tirar a máscara desse sistema vergonhoso. Vou sacanear.
Já que não se é justo nesse esquena de justiça, vou, só por sacanagem, ser injusto com o nosso injusto conceito de justiça!
Só por sacanagem!
Michel Carvalho.